terça-feira, 7 de abril de 2009

Adeus a um amigo (2001 a 2009)

Adeus a um amigo

Leia esse artigo ao som de:
"In the arms of the Angels" (Nos braços dos anjos)

São 4:17 da manhã. Mais uma noite que não consigo dormir direito.
Ainda assim, se eu pudesse, segurava essa noite em minhas mãos por muitas horas mais. Faria isso pra tentar entender o que aprender disso ou simplesmente pra estender o tempo de um amigo ao meu lado.

Eu tô desolado.
Nosso cãozinho, meu amigo, meu companheiro - o Venâncio - está indo embora... Ele está muito doente.

Ele contraiu um vírus destruidor, cinomose em poucos dias ele passou do saltitante bagunceiro da casa para uma versão triste de criança dependente e doente. Algo triste de ver e acompanhar.

Primeiro pensamos que era só tristeza pela perda de um amiguinho dele, o Jerry Lee, nosso outro vira-latas lindo, doce (e bagunceiro).
E os dois eram pura alegria. Ao jeito deles, eles brigavam e brincavam o tempo todo. Mas de repente seu amigo se foi, por força do acaso ou da irresponsabilidade humana. Animaizinhos não são brinquedos ou bibelôs, são seres vivos. Quando decide-se ter um cachorro, deve-se saber que isso é uma decisão muito importante. Algumas pessoas não pensam nisso. Vão pensar depois, quando se vêem irritadas com as pequenas travessuras deles, com falta de espaço ou com seus próprios umbigos que falam mais alto que o amor aos animaizinhos.

Mas essa é outra história.

Velando seu sono

Hoje estou aqui, sem sono, sem rumo, sem poder ajudar em nada meu amigo. Isso me deixa com uma sensação horrível, um aperto no peito daqueles que trazem angustia e tristeza.
Eu sempre acho que posso resolver tudo com sensatez, justiça e força de vontade. Mas nesse caso, não posso fazer nada. Isso me incomoda.

Ele começou a ficar triste. Parou de brincar e foi ficando quieto. Até ai não nos preocupamos tanto. Mas depois piorou, começou a perder o equilíbrio, começou a perder o apetite, começou a ficar isolado num canto. Doeu ver essa doença comer ele por dentro, roer sua personalidade alegre e estraçalhar com sua vontade de brincar, ser feliz e fazer tudo que um cãozinho gosta de fazer.

Ontem ele ainda tava andando, mas agora tô aqui olhando pra ele, embrulhado num pano, deitado aos meus pés, com o pescoço esticado pra trás como se quisesse mesmo sair daquela posição, mas sem ter forças. É quase manhã. Eu o olho. Eu paro, deito ao lado dele, sinto seu calor. As vezes ele abre os olhos, direciona-os pra mim contorcendo-se em minha direção, olhos fixos nos meus, mas na verdade, sinto que ele não me vê mais em alguns momentos.

A doença atrapalhou seus sentidos e sua consciência.
Ainda tentamos chamá-lo com a mesma “vozinha” meiga de quando brincávamos com ele. Ainda tentamos chamá-lo pra ir passear. Ainda tentamos fazer carinho na barriga dele, esperando que ele levante a perna como fazia até dormindo. Mas com nada disso conseguimos vê-lo reagir ou nos sentir ao lado dele.
Não sei se ele consegue nos senti aqui. Queria que sentisse.

Dias e noites de dedicação

Agora estamos em dias terríveis, tentando os últimos tratamentos pra fugir da sugestão dos veterinários de aplicar já a eutanásia. É a decisão mais difícil que já tomei. Autorizar que o matem ou vê-lo sofrer com nossas tentativas. Não vamos poder demorar muito a tomar essa decisão, mas não é fácil sequer pensar nela.

O que tento fazer pra passar a longa noite é escrever e pensar nele. Vi dezenas de fotos dele em meus álbuns e é incrível como, mesmo sem ter as mesmas facetas humanas, eles possuem várias expressões que demonstram tantos e tão maravilhosos sentimentos.
Posso ver em várias fotos e mesmo em minha memória seu rosto a sorrir, chorar, demonstrar tristeza, esperteza e até mesmo uma felicidade por momentos simples como um simples passeio a noite na rua deserta ou um pedaço de carne roubado das nossas mãos.

Está tudo tão vivo em minha memória, mas tudo tão distante, que quase demoro a entender que ele ainda está aqui, ao meu lado. Talvez porque eu saiba que as horas estão contadas. São tantos os seus jeitos, trejeitos, manias e bagunças.

Aqui, vendo uma sombra do que ele foi, lembro-me bem de tudo que vivemos. Todos momentos simples, mas que marcaram esses oito anos de amizade, igualmente sincera e simples.

Não quero esquecer todas as suas manias e gracinhas

Ele nunca soube andar na rua ao meu lado. Quando o soltávamos ele disparava, ficava elétrico, olhar atento quando dava suas raras paradas. Era lindo ver seus pelos ao vento o tempo inteiro. Cheirava tudo, pulava calçadas, se jogava no mato alto da praça, pisava em poças de água e provocava todo e qualquer cachorro que encontrava mais comportado. Eu o deixava, sem bronquear, sem me preocupar. O deixava correr até cansar e deitar ao meu lado no chão, cansado, esperando a hora de ir embora.

Ele nunca soube brincar de morder com cuidado. Era claro que estava a brincar, suas mordidas eram gentis, mas doídas. Eram gentis pra ele, mas pra nós, sempre deixavam marquinhas do seu carinho exacerbado.

Ele nunca soube dividir. Era ciumento, rosnava quando outro cachorro vinha ao nosso colo ou nos pedia atenção. “O Reinaldo é meu, o Reinaldo é meu”. Isso deixava ele maluquinho quando dito pela minha sobrinha. Era só ele estar no meu colo e alguém mexer comigo ou falar essa frase e ele mostrava os dentes e cercava território mostrando quem manda. É, eu era dele naquele momento.

Algumas manhãs que eu ficasse um pouco mais na cama, lá vinha ele aproveitar minha preguiça. Parava em frente a cama e ficava me olhando. Pedia com aqueles olhos grandes que eu só desse um pequeno sinal pra ele subir. E eu dava. Ele subia pro meu rosto, como a me afagar, mas depois repousava aos meus pés.
E assim era aos sábados, com minha mania de tirar um cochilo a tarde, lá estava ele esperando a hora certa pra passar o finalzinho da tarde comigo, enrolado em minhas pernas.

Sinto-me feliz pela forma como tratamos ele. Ele foi muito amado por todos nós, até pelo meu pai que é mais durão, mas ainda assim o amava.

Poucas vezes briguei com ele. Mesmo quando ele mastigava minhas coisas. Mesmo quando ele mastigou uma caneta mouse caríssima, ainda assim eu o abracei e dei a caneta pra ele terminar de comer enquanto eu pensava em quanto gastaria de novo.
Eu não o enxotava quando vinha a minha cama todo sujo ou molhado do banho a pouco tomado. Eu não falava alto quando ele pulava em meu colo se eu estava de roupas passadas pra ir trabalhar. Eu não o afugentava se ele me roubava um pedaço de chocolate das mãos ou bebia meu suco que deixava no sofá da sala.

Ao menos eu o tentei entender e o aceitei do jeito dele.

E mesmo quando ele tomava uma bronca ou outra, saia de rabos encolhidos, orelhas baixas e olhos tristes, ainda assim, 10 minutos depois ele vinha pulando se somente sorríssemos pra ele. Maldade alguma no coração e um amor incrível pra nos dar, o tempo todo e em qualquer momento que precisássemos.

Ele moldou a todos. Aquele cachorrinho peludo de olhar sapeca fez todos em casa mostrar seu lado criança. As vezes ele perseguia meu pai e dava uns botes como se disse: “Hei vovô, olha pra mim”.
Ele fazia minha mãe o tratar como uma criança e só com a força do seu carinho convenceu ela a chamá-lo de netinho. “Vem com a vovó” dizia ela sem nenhum pudor.

A noite ele passeava com meu pai. E parecia saber a hora certa.
E a qualquer hora do dia parecia que entendia quando falávamos a palavra “passear” ou “vamos”.

E quando eu o colocava em cima da estante. Ele ficava lá olhando como um príncipe cuidando de nós e esperando por colo pra descer. E quando colocávamos roupas nele, roupas de cachorro ou mesmo nossas maluquices inventadas. Ele andava torto com botinhas de lã, esperando pacientemente que tirássemos aquilo. Ele nos perdoava nossa falta de tempo, de atenção em alguns momentos e até nossa falta de compreensão e paciência. Ele nos perdoava sempre, mesmo quando nós achávamos que estávamos certos. Ele era sempre amor, carinho e dedicação.

Como pode um animal irracional ser tão carinho, tão intenso, tão cheio de amor para nos dar?
Não pode, a quem quiser entender um cão como um animal irracional, essa pergunta nunca será entendida.

Eles são anjos e temos que aprender a reconhecê-los como tal

Por vezes feliz por tê-lo tentado entender, as vezes fico triste comigo mesmo. Triste pelas coisas que não fiz por ele. Triste pelas coisas que queria fazer por ele e pelas coisas que nem sei que o fariam bem.

Eu queria ter levado ele pra ver o mar. Seria incrível ver aquela criança pulando na água, fugindo das ondas a beira mar e se enchendo de ária molhada. Eu não o levei na minha empresa. Eu queria, queria muito, mas nunca achava que tinha tempo. Essa maldita corrida pelo sucesso que nos fecha os olhos para as coisas pequenas importantes da vida. Eu queria ter levado ele mais vezes para o campo, para um sítio grande e vê-lo correr de novo pelo mato, brincar com as vacas e se encantar com as borboletas. Eu queria ter deixado ele ser mais cachorro mais vezes e esquecer de exigir comportamentos adequados dele. Eu queria saber que o fiz feliz. Até acho que o fiz, mas hoje, agora, vendo aqui ao meu lado, imóvel e no fim da vida, só consigo me culpar por não ter feito mais por ele. Queria tê-lo aceitado mais, tê-lo deixado ser mais criança e ser com ele também, criança, feliz e simplesmente um menino com seu cachorro.

É assim que me sinto agora, mas sei que essa culpa vai passar e vou entender que toda nossa família o amou muito.

É assim que me vejo, criança e inocente, por um instante sem pensar desejando que a lágrima que cai do meu rosto sobre o pelo dele se transforme em brilho e, como nos filmes, milagrosamente o fizesse levantar de repente pra lamber meu rosto, vivo, feliz e eterno amigo.

Mas não é assim que funciona. A vida tem começo e fim. Nossos amados entram e saem da nossa vida no tempo que tem que ser.
Dizem que as pessoas passam por nossa vida, cada uma delas, por um motivo e se vão por já terem cumprido sua missão conosco. Acredito que nossos amigos caninos assim o são também. Ele se vai e hoje não consigo tranqüilizar meu coração, mas sei que o tempo cuidará disso.

Sinto que ele está indo embora...

Eu estou achando incrível a dedicação da minha irmã, mas com toda a vontade de ser forte e resolver tudo que eu possuo, descobri que algumas coisas eu não tenho forças pra fazer. Vê-lo nesse estado me dói. Quero acreditar que ele vencerá a doença, mas não tenho forças pra tranqüilizar-me com isso.

Estou aqui escrevendo pra passar o tempo, pra ocupar a longa noite, pra driblar a angustia, pra me preparar pro pior. Enquanto busco conforto nas palavras, enquanto tento me confortar, enquanto busco egoísta sossegar meu coração, lembro-me dele. E ele, o que pensa? O que passa? O que sofre?

Incrível, mesmo nesse momento, entendo que ele pensa em mim. E em me confortar.

Por quatro vezes ele repetiu um gesto e só na última entendi. Ele me ouvia soluçar de choro, levantava a cabeça, tremula pela doença, desnorteado pelos medicamentos, olhar distante pela falta de consciência. Na última vez prestei atenção e o vi. Ele olhou direto pra mim, dificultoso encontrou meus olhos e soltou um som de dor quase como uma criança a chorar baixinho e então voltou a deitar a cabeça só quando ganhou minha atenção.

Com isso senti que, mesmo nessa situação, ele me dizia: “Eu ainda estou aqui. Mas nossa história acabou, estou sofrendo. Me deixa ir.....”

Aquele cachorrinho de pelos brancos e cinza, vira-lata misturado com poodle, bagunceiro e indisciplinado, carinhoso e preguiçoso, chegou na nossa família em 2001. Ele foi meu amigo, foi da família, foi nosso companheiro e foi um pedaço de inocência e pureza em nossas vidas. Ele foi de todos nós, não tinha dono, todos o queriam, todos os amavam. Ele foi nosso, mas acima de tudo, ele foi feliz, foi terno e teve a vida que queria, apenas a vida simples de um cachorro amado. Ele se foi em 03 de Abril de 2009.

No último instante, minha irmã, que o amava como a um bebê, demorou a soltá-lo. Ela deu seu último adeus a ele em forma de abraço terno e carinhos ao rosto. A ela ele deu o último olhar e suspiro de despedida. Minha mãe se encarregou de nos conscientizar que ele foi muito amado por todos nós. E eu o levei embora, mas não sem antes passear com ele pela praça que sempre corríamos aos sábados ouvindo as músicas que ele gostava com o rosto pra fora do carro e cabelo ao vento.

O que ele me ensinou eu não consigo descrever ou escrever. Mas no mais simples dos gestos, ele me fez lembrar, em todos os dias de nossa convivência, que existe uma criança eterna dentro de nós que deve ser regada sempre. Uma criança que ama seu cãozinho sim, que fala docemente com ele, que brinca de rolar no chão e se lamber o rosto.

Muito obrigado meu amigo. Você veio para nos fazer pessoas melhores. Nunca deixarei desaparecer essa criança que me ensinou a ser.

Reinaldo Luz Santos
04 de Abril de 2009

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